8 de dezembro de 2011

''À Filosofia Moral, compete considerar muito mais a amizade que a justiça”.
(Tomás de Aquino)

A deliberação jurídica, entendida em um sentido amplo como o processo que precede a tomada de decisão, é constituída por duas dimensões. A primeira, que tem recebido constante atenção nas últimas décadas, é a dimensão proposicional expressa na argumentação jurídica. A segunda dimensão tem um caráter não-proposicional. São os atos e hábitos cognitivos não-predicativos e atos e hábitos volitivos. Em Aristóteles este modo de caracterizar o processo deliberativo já está presente, quando ele exige a presença de virtudes morais ao lado da prudência para a boa deliberação.
A nossa tese é que a tradição aristotélico-tomista, ao tematizar a amizade, aponta para um conceito central para uma fenomenologia da deliberação jurídica na sua dimensão não-proposicional, especificamente no que diz respeito a casos envolvendo direitos humanos e direitos fundamentais. A amizade intervém em dois momentos: ela possibilita o reconhecimento do sujeito dos direitos humanos e determina o conteúdo desses direitos a partir de uma atitude de reciprocidade. 
O conceito de amizade adotado é aristotélico-tomista: amizade é a relação de reciprocidade derivada do reconhecimento do outro como outro eu. Entendida deste modo, a amizade é a mais importante das condições não-proposicionais do conhecimento e da efetivação da justiça.

2. JUSTIÇA E ARGUMENTAÇÃO

A justiça racionaliza as relações sociais submetendo-as à idéia de igualdade. Essa igualdade é obtida mediante um procedimento de classificação: “la senda por la cual todo derecho persigue e debe perseguir la igualdad es la generalización, es decir, la formación de clases y el estabelecimiento de reglas por las que se han de dirigir.” Os seres humanos e seus atos são considerados iguais na medida em que possuem os mesmos predicados relevantes que os incluam em uma mesma classe: proprietários, credores, atos administrativos, crimes, etc. 
A igualdade que a justiça encontra no plano do universal, pode ser formulada do seguinte modo: “os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma”. Na aplicação do direito, trata-se de elaborar um juízo que afirme a inclusão de um determinado indivíduo (singular) em uma determinada classe (universal) e que, portanto, deve ser tratado do mesmo modo que os outros membros dessa classe (igualdade). A descoberta do justo no caso depende de uma argumentação que permita concluir que o singular em exame pertence ou não a uma determinada classe, ou em outros termos, conhecer qual é o caso da regra. 
Como toda atividade cognitiva proposicional, a argumentação jurídica depende de elementos não-proposicionais. Não há regras para a aplicação de regras, diz Kant. Ou seja: a aplicação de regras depende em última instância de fatores não governados por regras e que não são articulados de modo predicativo. As classificações da justiça, ou a aplicação do universal da regra ou da classe ao singular do caso, dependem de um lado, da argumentação jurídica, e de outro, de condições da boa argumentação, sendo a amizade o mais importante delas. 

3. A AMIZADE E A DETERMINAÇÃO DO SUJEITO DE DIREITO.

Examinemos um exemplo de liberdade profissional narrado por Perelman: “Foi em 1889 que, pela primeira vez na Bélgica, uma mulher belga, titular do diploma de doutora em direito, quis inscrever-se na Ordem dos Advogados. Por oposição do procurador-geral, o processo veio até a Corte de Cassação que, apesar do art. 6 da Constituição, que estipula que os belgas são iguais perante a lei, impediu a referida inscrição. No acórdão de 11 de novembro de 1889, a Corte de Cassação afirma que ´se o legislador não excluíra por uma disposição formal as mulheres da Ordem dos Advogados, era por considerar um axioma por demais evidente para que seja preciso enunciá-lo que o serviço da justiça era reservado aos homens´” Perelman afirma que trinta anos depois, a proposição contrária, a saber, que as mulheres têm o direito de advogar, tornou-se evidente. 
A evidência que aqui se trata é a evidência de uma percepção: “la percepción (...) es el acto de conocimiento inmediato e directo de lo real. Es la presencia intencional actual de lo real em su concreción inmediata.” A percepção forma o núcleo cognitivo daquilo que convencionou-se chamar de reconhecimento na filosofia prática contemporânea. O reconhecimento é a percepção do outro como sujeito igual a si. Na tradição aristotélico-tomista, o reconhecimento é tematizado como um elemento da amizade: o amigo é aquele que é reconhecido ou percebido como “outro eu”: “Pues el amigo, según el afecto próprio de amigo, es como otro sí mismo, dado que el hombre es afectivamente movido hacia el amigo como hacia él mismo.” 
No final do século XIX, as mulheres não eram reconhecidas como iguais aos homens e portanto, não eram sujeitos de direito como os homens. A regra não diz a quem ela se aplica. A própria decisão referida afirma que aquilo que pertence ao contexto social da regra como um dado óbvio não é enunciado por ela. De fato, são as relações de reconhecimento ou amizade que determinam quem são os sujeitos da regra. O reconhecimento se dá de um modo pré-jurídico, porque a percepção do outro como outro eu é uma atitude cognitiva não-proposicional anterior à argumentação jurídica.
A temática contemporânea do reconhecimento como fenômeno pré-jurídico, no qual a igualdade entre sujeitos de direito consitui-se previamente à argumentação jurídica, também encontra lugar na teoria tomista da amizade: “De ahí que a la amistad pertenezca usar de alguna manera la igualdad ya constituída, pero a la justicia pertenece reducir a la igualdad lo desigual. Dándose la igualdad, cesa el acto de justicia. Por eso, la igualdad es lo último en la justicia, pero inicial en amistad.” A igualdade é inicial na amizade porque é percebida e portanto, precede a argumentação. Já na justiça, a igualdade é conhecida após a argumentação.

4. A AMIZADE E O DEVIDO A OUTREM: A RECIPROCIDADE

Tomemos agora o exemplo do direito humano a não ser torturado, que se tornou problemático nos últimos anos.
Os juristas do departamento de Estado norte-americano chegaram à conclusão, depois de examinar cuidadosamente os textos das Convenções de Genebra que especificavam o conceito de tortura, que a privação de sono e de comida, e a manutenção dos interrogados em posições estressantes não constitui tortura. O professor de Direito Penal da Universidade de Harvard, Alan Dershovitz, defendeu que a inserção de agulhas esterilizadas sob as unhas dos interrogados também não constituiria tortura, pois essa só se configura com a perda de uma função ou membro.
Neste exemplo, vamos focalizar o término do processo deliberativo, a formulação do juízo para o caso. A nossa hipótese é a de que o consentimento a um determinado juízo deve atender a reciprocidade exigida pela amizade.
O raciocínio prático opera a partir de princípios, e o primeiro deles, no campo da moralidade intersubjetiva é o mandamento do amor ou a regra de ouro , que para Tomás, é uma regra de amizade: “Se dice en la Ética que los sentimientos de amistad hacia el prójimo tienen su origen em los sentimientos del hombre hacia sí mismo, porcuanto el hombre se conduce con los otros como consigo mismo. Y así en el dicho: Todo lo que quereis que os hagan los hombres, hacedselo vosotros a ellos, se declara certa regla de amor del prójimo, que implicitamente se contiene también em la sentencia: Amarás al prójimo como a ti mismo; y así viene a ser una explicación de este precepto.” 
A prioridade do dever fundamental de amizade em relação aos deveres específicos de justiça é explicitada por Tomás nas seguintes passagens: “Aquellos dos preceptos (del amor de Dios e del amor del prójimo) son los preceptos primeros y universales de la ley natural, de suyo evidentes a la razón, o por la naturaleza, o por la fé; y así los preceptos del decálogo se reducen a ellos como conclusiones a sus principios.” O preceito primário é um preceito de amizade, os preceitos secundários ou derivados são preceitos de justiça: “Los preceptos de la segunda tabla contienen el orden de la justicia que se debe observar entre los hombres, a saber, que a ninguno se haga perjuicio y que se dé a cada uno lo que le es debido.” 
A justiça está subordinada, portanto, à amizade. Tomás afirma que “la ley humana mira principalmente a fomentar la amistad entre los hombres”. A ordem da justiça instituída pela lei está voltada à realização da amizade. Como só sabe aplicar a lei quem conhece e quer o fim da lei, conclui-se que somente aquele que se coloca em um horizonte de amizade é capaz de identificar o caso da lei. Se o primeiro princípio que regula as relações com outrem exige a reciprocidade da amizade, o juízo de justiça só se torna perfeito se for orientado por uma atitude volitiva de querer para o outro o bem que se quer para si: “un hombre es amigo de otro cuando hace al amigo lo mismo que se haría a si mismo.” 
Voltemos ao nosso exemplo. Após a argumentação sobre o conteúdo do dever de justiça “não torturar”, deve haver o consentimento a uma das possibilidades interpretativas. A passagem do universal “não torturar” ao singular do caso depende, obviamente, da argumentação. Inicialmente, discute-se os critérios de inclusão ou exclusão de atos sob o conceito de tortura. Contudo, ainda que a argumentação seja condição necessária do juízo, ela não é condição suficiente. A argumentação abre-se ao infinito. Não há fechamento argumentativo interno à argumentação. Diante das várias possibilidades dadas pela argumentação, é necessário um ato não-predicativo de consentimento que encerre a argumentação a partir de fora. Se a amizade é o fim da justiça, a escolha do melhor argumento deve ser fundado em uma atitude de reciprocidade: o que é tortura para mim é também tortura para o outro. Não basta a consciência de regra de ouro: é necessário a virtude que a atualize. Se eu fosse interrogado, consideraria que a inserção de agulhas esterilizadas sob minhas unhas constituiria um ato de tortura? Toda classificação presente na argumentação jurídica deve culminar na identificação com o outro: somente aquele que se faz caso da regra conhece o conteúdo da regra.
No caso da atual doutrina norte-americana sobre tortura, torna-se patente a advertência de Carl Schmitt, que alertava para a necessidade da justiça ser orientada pela amizade: “Se o inimigo se torna juiz, o juiz se torna inimigo” .

CONCLUSÃO

Kierkegaard, ao comentar a frase de S. Paulo, “o amor é a plenitude da lei” , tece os seguintes comentários: “A lei, apesar de todas as suas determinações é, contudo, de certo modo o indeterminado, mas o amor é a plenitude”. A lei não diz a quem será aplicada e nem diz como deve ser aplicada, ela é incompleta, não é plena. Só a amizade permite determinar o indeterminado da lei, plenificando os seus vazios, e dizendo o que foi silenciado: “a lei se assemelha a alguém que fala com dificuldade, que apesar do esforço não consegue dizer tudo, mas o amor é a plenitude” .

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